23 de março de 2008

Caminhava lentamente e sem peso, desaprendendo os primeiros passos que já pareciam pouco firmes. O corpo desequilibrado balançava de um lado para o outro conforme fosse o pé a levantar, imitando o pêndulo de um relógio que havia marcado às vistas dela tantas horas quantas fossem as necessárias para preencher os quase noventa anos. Talvez tivesse dois a menos que oitenta e seis, mas era de uma velhice de uva passa, com a pele do corpo inteiro dominada pelas rugas mais fundas, exibidas de todas as estações de chuva e sol e flores porque haviam passado. E ela seguia caminhando sem pressa, os cabelos completamente brancos arrumados com demora e delicadeza para confortar as pétalas. Era quase uma folha arrastada por brisa suave. Tinha as mesmas marcas de folha riscadas no corpo.
A tudo isso eu assistia com grandes e agitados olhos, debruçada sobre a janela tão verde quanto eu era verde, num tom duplamente sóbrio da cor: verde-musgo. E tanto mais se faziam agitados meus olhos quanto menos pressa a velha tinha em andar. A rua parecia interminável e eu, por uma fina impressão de loucura, acreditava que ela somente alcançaria a esquina depois de ultrapassar os cem anos, quando a flor já houvesse murchado.
Como me doía toda aquela fragilidade, a (minha) existência violenta aprisionada em um corpo de velha. E não era preciso que fosse um corpo doente para me doer, bastava que fosse assim, um corpo leve e enrugado ensaiando privações, dificultoso em cada um dos seus mais banais movimentos. Eu podia ver com nitidez, todo passo que ela dava era excessivamente miúdo, feito vagaroso pelo conhecimento de que já não havia para onde correr desde que... (nunca houvera!) A rigidez dos membros a obrigava a ter paciência com a vida, com a rua longa, com as próprias pernas muito cansadas do que o sono da noite não descansa nem recupera. Mesmo assim não parecia que ela se lamentasse demais por isso, a velha cumpria sua condenação resignada e se tornara imperturbável naquele passo rastejante que a levava à esquina e aonde fosse. Ela erguia os braços com esforço segurando a flor e impedindo que o vento a levasse.
Do lugar donde eu a examinava, não podia sentir o cheiro adocicado do talco que eu sei, exalava dela como se a flor estivesse murcha. Era tão enigmática e inútil aquela velha, como um desenho bem delineado mostrando forçosamente que a vida não podia obedecer à uma razão, ou ela seria uma razão perdida, esvaziada; estéril. Existia por apenas existir e caminhava, despreocupada e leve, porque caminhar era simplesmente bom, sem atropelos, observando os próprios passos mansos.
Enquanto ela permaneceu ali, facilmente ao meu alcance, não pude deixar de vigiá-la. Me fundei completamente em atenção ao que passava: era um desfile da finitude mais calma: a velha, que não se importando com a morte à espreita, usava uma flor no cabelo.

Um comentário:

Alana disse...

queria aprender com os idosos a ter paciência com a vida...

mto bom o teu texto moça
um texto de peso conduzido com uma leveza de quem sabe escrever
parabénss